As duas realidades: uma triste realidade
di Uberitan Iorio
Quem, movido por alguma recôndita premência do espírito, sentir necessidade de compreender o mundo – e, por inclusão, o Brasil – moderno precisa ler duas obras inexcedíveis em acuidade, bom senso e erudição e que, adicionalmente, servem de aviso, como um grande semáforo vermelho a piscar apontando para perigos à frente. Refiro-me aos livros A Rebelião das Massas e Hitler e os Alemães, respectivamente, do filósofo espanhol José Ortega y Gasset, publicado em 1930, e do também filósofo alemão Eric Voegelin, que reúne onze preleções proferidas no verão de 1964 na Universidade Ludwig Maximilian de Munique.
O primeiro talvez seja mais conhecido – ou menos desconhecido - aqui no Brasil, mas ambos são pontos de partida obrigatórios para a compreensão daquilo que um “caipira-pira-pora”, em linguagem tosca, porém educado sob valores morais sólidos, exprimiria como “Eta mundo doido, sô!” Com efeito, a quem quer que não tenha abdicado de valores transcendentais, parece que nosso velho planeta está de pernas para o ar, com o aspecto de uma casa com todos os móveis revirados, gavetas abertas, roupas em desalinho nos armários, sujeira em todos os cômodos, quadros tortos nas paredes e poeira abundante. O “certo” e o “errado” ganharam aspas, o belo passou a ser rejeitado e o feio a ser glorificado, o pudor transfigurou-se em vício e o despudor em virtude, o recato passou a ser caretice e a libidinagem estilo de vida, por imposição dos ditames do relativismo moral e da ditadura politicamente correta, que vêm levando há décadas as massas a comportarem-se como grandes varas de porcos correndo para o abismo, mas sem a consciência de estarem correndo para o abismo e – o que não é menos grave – achando que não estão correndo para a própria destruição, mas para a libertação e a salvação.
Não pretendo escrever neste artigo uma resenha sobre os dois magníficos livros, nem muito menos um ensaio, mas acredito que seja interessante pinçar alguns pontos comuns a ambos, com o objetivo de levar o leitor à reflexão e, talvez, a uma compreensão isenta sobre os terríveis problemas da sociedade atual. Problemas de que nem remotamente as massas parecem dar-se conta.
O que Gasset escreveu sobre a Europa no último capítulo da Rebelião e que qualifica como o “teorema central do ensaio” – de que o Velho Continente teria esquecido a moral – hoje, decorridos quase oitenta anos, infelizmente, podemos reescrever aplicando à sociedade ocidental: nossa sociedade ficou sem moral! E meditar na atualidade das palavras do grande filósofo espanhol: “Não é que o homem-massa menospreze uma moral antiquada em benefício de outra emergente, mas que o centro de seu regime vital consiste precisamente na aspiração a viver sem sujeitar-se a moral alguma”, ao que aduz que seria ingênuo acusar um indivíduo médio de hoje de falta de moral, uma vez que, ao invés de soar como uma acusação, uma afirmativa desse tipo adquire ares de lisonja, a tal ponto chegou o nível de imoralismo. Basta uma ligeira leitura a qualquer caderno dito “cultural” de qualquer jornal, ou um giro com o controle remoto pelos canais de TV, ou um olhar para as nossas universidades, ou uma ligeira análise do comportamento de políticos e de magistrados, para verificarmos a atualidade dessa afirmativa.
Mais do que enxergar a crise da sociedade de hoje como um pretenso dilema entre gerações, civilizações ou mesmo entre sistemas morais distintos, um “moderno” e o outro “ultrapassado”, o que chama a atenção na obra de Gasset é que ele vê o homem-massa como um ser inteiramente independente de moral - que, para Gasset, é, em qualquer circunstância, “consciência de serviço e obrigação”.
Voegelin, ao analisar as razões que permitiram que o nacional-socialismo chegasse ao poder na Alemanha e perpetrasse tantas barbaridades, faz uso freqüente das expressões primeira realidade e segunda realidade, criadas por Robert von Musil e desenvolvidas por Heimito von Doderer. Existe uma realidade – a primeira – imanente ao homem, mesmo quando este perde a razão, tanto no campo fenomenológico da noética como no prisma pneumático do espírito, como componentes da realidade que o auxiliam a ordenar a própria existência. Mas, ao negar tal axioma, nem por isso ele deixa de ser homem, pois, embora sua imagem da realidade seja equivocada, ela não perde a forma de realidade, o que significa que ele ainda é um homem, com todo o direito a fazer declarações a respeito das ordens do mundo, mesmo quando a força que o orienta para o divino se perde. Mas, ao substituir a ordem real por uma pseudo-ordem, o homem já não vive na realidade, mas em uma falsa imagem da realidade, ou segunda realidade que, no entanto, ele crê – e, em geral, tanto mais quanto menor for o seu nível intelectual - ser a realidade genuína.
Quando essa postura pneumopática, de distorção do pneuma, da essência espiritual, acontece, surgem duas realidades: a primeira, em que vive o homem ordenado com a transcendência de sua vida e a segunda, habitada pelo homem doente pneumaticamente e que, necessariamente, entra em choque permanente com a outra, conflito que se manifesta na construção de sistemas, já que, como a realidade não tem o caráter de um sistema, então um sistema é necessariamente sempre falso e, quando pretende retratar a realidade, só consegue se manter mediante trapaças intelectuais, como em Marx e Nietzsche, por exemplo. A verdade é que, como observou Voegelin, “o homem está pneumopático, está doente do espírito, e o caso agora se complica ainda mais pelo fato de ele estar ciente dessa trapaça, como é muito claro, por exemplo, em Nietzsche, que fala explicitamente desse problema”.
Mas, se Marx e Nietzshe sabiam que estavam trapaceando (Nietzsche, que conhecia perfeitamente a realidade verdadeira de Pascal e sabia que a sua era uma imagem falsa, vivia freqüentemente a tensão entre a realidade trapaceada que ele buscava e a que ele admirava em Pascal), o mesmo não se pode afirmar das trapaças pequeno-burguesas, ou, na linguagem de Ortega y Gasset, do logro cego em que vivem as massas. O homem-massa, com quem você, leitor, esbarra diariamente no seu prédio, na TV, no seu emprego, na universidade, em passeatas e em todos os lugares, apenas mente e, muitas vezes, com uma boa-fé tão grande que gera o fenômeno da honestidade compacta, que resulta dos conflitos entre a primeira e a segunda realidades, em níveis intelectuais relativamente mais baixos.
São as massas de Gasset exercendo o seu domínio. Honestidade, tal como pontualidade, frugalidade e outros atributos, são virtudes secundárias, ou seja, em poucas palavras, alguém pode ser honesto para com o seu chefe, que é um político corrupto, ou freqüentar pontualmente a missa dominical e, durante o resto da semana, envolver-se em atos de corrupção, ou, ainda, poupar com vistas a aplicar um grande golpe no futuro... Um exemplo de honestidade compacta é a crença generalizada de que, se João é pobre, é porque Pedro é rico e, portanto, de que o Estado deve tirar do segundo para “distribuir” para o primeiro.
Em outras palavras, a partir da segunda metade do século XIX e em especial no século passado, ocorreu uma enorme alteração da ênfase na representação do que é a realidade. No dizer de Voegelin, “a realidade da razão e do espírito, que se revela nas experiências noética [ou seja, que buscam apreender a percepção] e pneumática, desaparece, e em seu lugar a ênfase é transferida para a experiência do mundo das coisas na existência espaço-temporal”. Porém, mesmo que os símbolos de transcendência sejam seriamente deformados e desacreditados, a ordem verdadeira, autêntica, genuína do ser, permanece inalterada. Mesmo que Hegel, Marx e Nietzsche “matem” Deus e proporcionem mil explicações sobre a sua morte, o Criador permanecerá eterno e o homem, com toda a sua arrogância e com toda a parafernália ténica moderna, terá que continuar lidando com a sua vida marcada pela criaturalidade e pela morte. Quando a fantasia, seja da concupiscência, seja do poder, seja do dinheiro pelo dinheiro muda a ênfase da realidade, ela cria uma falsa imagem da realidade, da primeira realidade. E quando o homem busca viver na segunda realidade, tentando inutilmente transformar-se de imago Dei em imago hominis, explodem os conflitos e os dilemas com a primeira realidade que, por ser a autêntica, é uma ordem cuja existência é contínua e é inescapável.
Surgem, então, quatro conseqüências entre as quais se debate o homem atual, em um processo de diátese que se origina de sua tentativa de ser auto-suficiente. A primeira é que o vácuo que necessariamente aparece entre as duas realidades precisa ser preenchido com o simbolismo da segunda realidade, dado que a primeira não pode ser abolida. Isto explica os apocalipses e as visões revolucionárias da História do mundo imanente de Kant, Condorcet, Comte e Marx, entre outros.
A segunda é uma enorme desilusão, já que o homem, ao tentar exterminar algo que não pode ser eliminado – a primeira realidade - e ao imputar-lhe o caráter de falsa realidade, vê-se na obrigação de viver a vida sem qualquer obrigação de transcendência e a buscar a negação do espírito. O resultado é o terrível sentimento do abandono por Deus.
A terceira é a própria destruição da imago Dei, ou seja, a desumanização do homem, com a conseqüente fantasia do homem novo de Marx e do super-homem de Nietzsche.
E a quarta é que, ao negar as experiências noéticas e pneumáticas do ser, o homem degenera o próprio sentido de sua vida, passando a preencher com realidades inexistentes fenômenos como os do poder, dinheiro, fama, conflitos, instinto, classe, interesse, religião, nação e raça.
Eis, em síntese, as duas realidades a que se referiu Voegelin, bem como a vida vulgar do homem massificado de Gasset.
Agora, a triste realidade a que aludi no título deste despretensioso artigo: é evidente que o mundo em que estamos vivendo neste início do século XXI está submerso na segunda realidade. A sociedade está doente espiritualmente, o relativismo moral aboliu o pneuma, as ideologias desfiguraram a noese da boa fenomenologia e parece que cada homem, com raríssimas exceções, pensa – ou pensa que pensa, já que não lhe ensinaram a pensar por conta própria – como todos os demais. Como dizem os bandidos que infestam o Rio de Janeiro, “está tudo dominado”... O livro de Voegelin mostra claramente como tal estado de estupidificação proporcionou a ascensão de Hitler ao poder e os enormes crimes contra a humanidade, cometidos pelos nacional-socialistas, com a complacência da sociedade alemã. Com o comunismo, não foi diferente. Gramsci, que era um homem culto, moldou uma segunda realidade e ensinou como deveria ser espalhada pelo mundo inteiro. Assim, há uma enorme massa de “gramscianos honestamente compactos” que nem sabem quem foi Il Gobbo.
No Brasil, a segunda realidade está confortável e democraticamente instalada nos três poderes, sem que as massas sequer desconfiem do que está acontecendo. Cabe aos que se recusam a se deixarem massificar, aos que pensam por conta própria e, conseqüentemente, enxergam mais à frente, dar o sinal de alerta. No artigo do mês anterior, apontei diversos perigos às liberdades individuais que pairam sobre a sociedade brasileira. Quem quiser refletir sobre isto, que o faça. Não podemos nos deixar lançar, como porcos em desabalada carreira, ao abismo. E – pior – sem perceber que há mentes pneumopáticas ocupando postos importantes ou assessorando “intelectualmente” os que ocupam esses postos, que vivem plenamente na segunda realidade e que passam as suas horas, devidamente pagos pelos contribuintes, pensando em lançar o Brasil no abismo.
Quem, movido por alguma recôndita premência do espírito, sentir necessidade de compreender o mundo – e, por inclusão, o Brasil – moderno precisa ler duas obras inexcedíveis em acuidade, bom senso e erudição e que, adicionalmente, servem de aviso, como um grande semáforo vermelho a piscar apontando para perigos à frente. Refiro-me aos livros A Rebelião das Massas e Hitler e os Alemães, respectivamente, do filósofo espanhol José Ortega y Gasset, publicado em 1930, e do também filósofo alemão Eric Voegelin, que reúne onze preleções proferidas no verão de 1964 na Universidade Ludwig Maximilian de Munique.
O primeiro talvez seja mais conhecido – ou menos desconhecido - aqui no Brasil, mas ambos são pontos de partida obrigatórios para a compreensão daquilo que um “caipira-pira-pora”, em linguagem tosca, porém educado sob valores morais sólidos, exprimiria como “Eta mundo doido, sô!” Com efeito, a quem quer que não tenha abdicado de valores transcendentais, parece que nosso velho planeta está de pernas para o ar, com o aspecto de uma casa com todos os móveis revirados, gavetas abertas, roupas em desalinho nos armários, sujeira em todos os cômodos, quadros tortos nas paredes e poeira abundante. O “certo” e o “errado” ganharam aspas, o belo passou a ser rejeitado e o feio a ser glorificado, o pudor transfigurou-se em vício e o despudor em virtude, o recato passou a ser caretice e a libidinagem estilo de vida, por imposição dos ditames do relativismo moral e da ditadura politicamente correta, que vêm levando há décadas as massas a comportarem-se como grandes varas de porcos correndo para o abismo, mas sem a consciência de estarem correndo para o abismo e – o que não é menos grave – achando que não estão correndo para a própria destruição, mas para a libertação e a salvação.
Não pretendo escrever neste artigo uma resenha sobre os dois magníficos livros, nem muito menos um ensaio, mas acredito que seja interessante pinçar alguns pontos comuns a ambos, com o objetivo de levar o leitor à reflexão e, talvez, a uma compreensão isenta sobre os terríveis problemas da sociedade atual. Problemas de que nem remotamente as massas parecem dar-se conta.
O que Gasset escreveu sobre a Europa no último capítulo da Rebelião e que qualifica como o “teorema central do ensaio” – de que o Velho Continente teria esquecido a moral – hoje, decorridos quase oitenta anos, infelizmente, podemos reescrever aplicando à sociedade ocidental: nossa sociedade ficou sem moral! E meditar na atualidade das palavras do grande filósofo espanhol: “Não é que o homem-massa menospreze uma moral antiquada em benefício de outra emergente, mas que o centro de seu regime vital consiste precisamente na aspiração a viver sem sujeitar-se a moral alguma”, ao que aduz que seria ingênuo acusar um indivíduo médio de hoje de falta de moral, uma vez que, ao invés de soar como uma acusação, uma afirmativa desse tipo adquire ares de lisonja, a tal ponto chegou o nível de imoralismo. Basta uma ligeira leitura a qualquer caderno dito “cultural” de qualquer jornal, ou um giro com o controle remoto pelos canais de TV, ou um olhar para as nossas universidades, ou uma ligeira análise do comportamento de políticos e de magistrados, para verificarmos a atualidade dessa afirmativa.
Mais do que enxergar a crise da sociedade de hoje como um pretenso dilema entre gerações, civilizações ou mesmo entre sistemas morais distintos, um “moderno” e o outro “ultrapassado”, o que chama a atenção na obra de Gasset é que ele vê o homem-massa como um ser inteiramente independente de moral - que, para Gasset, é, em qualquer circunstância, “consciência de serviço e obrigação”.
Voegelin, ao analisar as razões que permitiram que o nacional-socialismo chegasse ao poder na Alemanha e perpetrasse tantas barbaridades, faz uso freqüente das expressões primeira realidade e segunda realidade, criadas por Robert von Musil e desenvolvidas por Heimito von Doderer. Existe uma realidade – a primeira – imanente ao homem, mesmo quando este perde a razão, tanto no campo fenomenológico da noética como no prisma pneumático do espírito, como componentes da realidade que o auxiliam a ordenar a própria existência. Mas, ao negar tal axioma, nem por isso ele deixa de ser homem, pois, embora sua imagem da realidade seja equivocada, ela não perde a forma de realidade, o que significa que ele ainda é um homem, com todo o direito a fazer declarações a respeito das ordens do mundo, mesmo quando a força que o orienta para o divino se perde. Mas, ao substituir a ordem real por uma pseudo-ordem, o homem já não vive na realidade, mas em uma falsa imagem da realidade, ou segunda realidade que, no entanto, ele crê – e, em geral, tanto mais quanto menor for o seu nível intelectual - ser a realidade genuína.
Quando essa postura pneumopática, de distorção do pneuma, da essência espiritual, acontece, surgem duas realidades: a primeira, em que vive o homem ordenado com a transcendência de sua vida e a segunda, habitada pelo homem doente pneumaticamente e que, necessariamente, entra em choque permanente com a outra, conflito que se manifesta na construção de sistemas, já que, como a realidade não tem o caráter de um sistema, então um sistema é necessariamente sempre falso e, quando pretende retratar a realidade, só consegue se manter mediante trapaças intelectuais, como em Marx e Nietzsche, por exemplo. A verdade é que, como observou Voegelin, “o homem está pneumopático, está doente do espírito, e o caso agora se complica ainda mais pelo fato de ele estar ciente dessa trapaça, como é muito claro, por exemplo, em Nietzsche, que fala explicitamente desse problema”.
Mas, se Marx e Nietzshe sabiam que estavam trapaceando (Nietzsche, que conhecia perfeitamente a realidade verdadeira de Pascal e sabia que a sua era uma imagem falsa, vivia freqüentemente a tensão entre a realidade trapaceada que ele buscava e a que ele admirava em Pascal), o mesmo não se pode afirmar das trapaças pequeno-burguesas, ou, na linguagem de Ortega y Gasset, do logro cego em que vivem as massas. O homem-massa, com quem você, leitor, esbarra diariamente no seu prédio, na TV, no seu emprego, na universidade, em passeatas e em todos os lugares, apenas mente e, muitas vezes, com uma boa-fé tão grande que gera o fenômeno da honestidade compacta, que resulta dos conflitos entre a primeira e a segunda realidades, em níveis intelectuais relativamente mais baixos.
São as massas de Gasset exercendo o seu domínio. Honestidade, tal como pontualidade, frugalidade e outros atributos, são virtudes secundárias, ou seja, em poucas palavras, alguém pode ser honesto para com o seu chefe, que é um político corrupto, ou freqüentar pontualmente a missa dominical e, durante o resto da semana, envolver-se em atos de corrupção, ou, ainda, poupar com vistas a aplicar um grande golpe no futuro... Um exemplo de honestidade compacta é a crença generalizada de que, se João é pobre, é porque Pedro é rico e, portanto, de que o Estado deve tirar do segundo para “distribuir” para o primeiro.
Em outras palavras, a partir da segunda metade do século XIX e em especial no século passado, ocorreu uma enorme alteração da ênfase na representação do que é a realidade. No dizer de Voegelin, “a realidade da razão e do espírito, que se revela nas experiências noética [ou seja, que buscam apreender a percepção] e pneumática, desaparece, e em seu lugar a ênfase é transferida para a experiência do mundo das coisas na existência espaço-temporal”. Porém, mesmo que os símbolos de transcendência sejam seriamente deformados e desacreditados, a ordem verdadeira, autêntica, genuína do ser, permanece inalterada. Mesmo que Hegel, Marx e Nietzsche “matem” Deus e proporcionem mil explicações sobre a sua morte, o Criador permanecerá eterno e o homem, com toda a sua arrogância e com toda a parafernália ténica moderna, terá que continuar lidando com a sua vida marcada pela criaturalidade e pela morte. Quando a fantasia, seja da concupiscência, seja do poder, seja do dinheiro pelo dinheiro muda a ênfase da realidade, ela cria uma falsa imagem da realidade, da primeira realidade. E quando o homem busca viver na segunda realidade, tentando inutilmente transformar-se de imago Dei em imago hominis, explodem os conflitos e os dilemas com a primeira realidade que, por ser a autêntica, é uma ordem cuja existência é contínua e é inescapável.
Surgem, então, quatro conseqüências entre as quais se debate o homem atual, em um processo de diátese que se origina de sua tentativa de ser auto-suficiente. A primeira é que o vácuo que necessariamente aparece entre as duas realidades precisa ser preenchido com o simbolismo da segunda realidade, dado que a primeira não pode ser abolida. Isto explica os apocalipses e as visões revolucionárias da História do mundo imanente de Kant, Condorcet, Comte e Marx, entre outros.
A segunda é uma enorme desilusão, já que o homem, ao tentar exterminar algo que não pode ser eliminado – a primeira realidade - e ao imputar-lhe o caráter de falsa realidade, vê-se na obrigação de viver a vida sem qualquer obrigação de transcendência e a buscar a negação do espírito. O resultado é o terrível sentimento do abandono por Deus.
A terceira é a própria destruição da imago Dei, ou seja, a desumanização do homem, com a conseqüente fantasia do homem novo de Marx e do super-homem de Nietzsche.
E a quarta é que, ao negar as experiências noéticas e pneumáticas do ser, o homem degenera o próprio sentido de sua vida, passando a preencher com realidades inexistentes fenômenos como os do poder, dinheiro, fama, conflitos, instinto, classe, interesse, religião, nação e raça.
Eis, em síntese, as duas realidades a que se referiu Voegelin, bem como a vida vulgar do homem massificado de Gasset.
Agora, a triste realidade a que aludi no título deste despretensioso artigo: é evidente que o mundo em que estamos vivendo neste início do século XXI está submerso na segunda realidade. A sociedade está doente espiritualmente, o relativismo moral aboliu o pneuma, as ideologias desfiguraram a noese da boa fenomenologia e parece que cada homem, com raríssimas exceções, pensa – ou pensa que pensa, já que não lhe ensinaram a pensar por conta própria – como todos os demais. Como dizem os bandidos que infestam o Rio de Janeiro, “está tudo dominado”... O livro de Voegelin mostra claramente como tal estado de estupidificação proporcionou a ascensão de Hitler ao poder e os enormes crimes contra a humanidade, cometidos pelos nacional-socialistas, com a complacência da sociedade alemã. Com o comunismo, não foi diferente. Gramsci, que era um homem culto, moldou uma segunda realidade e ensinou como deveria ser espalhada pelo mundo inteiro. Assim, há uma enorme massa de “gramscianos honestamente compactos” que nem sabem quem foi Il Gobbo.
No Brasil, a segunda realidade está confortável e democraticamente instalada nos três poderes, sem que as massas sequer desconfiem do que está acontecendo. Cabe aos que se recusam a se deixarem massificar, aos que pensam por conta própria e, conseqüentemente, enxergam mais à frente, dar o sinal de alerta. No artigo do mês anterior, apontei diversos perigos às liberdades individuais que pairam sobre a sociedade brasileira. Quem quiser refletir sobre isto, que o faça. Não podemos nos deixar lançar, como porcos em desabalada carreira, ao abismo. E – pior – sem perceber que há mentes pneumopáticas ocupando postos importantes ou assessorando “intelectualmente” os que ocupam esses postos, que vivem plenamente na segunda realidade e que passam as suas horas, devidamente pagos pelos contribuintes, pensando em lançar o Brasil no abismo.